“A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Como assegurar esse direito fundamental — art. 196 da Constituição Federal — diante do crescente aumento dos gastos do poder público com demandas judiciais de assistência à saúde? Quando a priorização da tutela coletiva não permite que se abandone o atendimento de ações individuais, em matéria de saúde?
Em síntese, foi esse o desafio lançado aos participantes do “2º TCE em Debate — Judicialização da Saúde”, promovido pelo Tribunal de Contas de Santa Catarina, na tarde desta terça-feira (19/9), no auditório da sua sede, em Florianópolis. Marco Antônio Teixeira, procurador de Justiça e coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção à Saúde Pública (CAOP/Saúde) do Ministério Público do Paraná (MPPR), e Ralf Zimmer Júnior, titular da Defensoria Pública de Santa Catarina, sob a mediação do jornalista Paulo Alceu, apontaram caminhos para o enfrentamento dessas questões, que se agravam com a crise financeira da União, estados e municípios brasileiros.
“Precisamos de uma reforma da saúde”, provocou o jornalista, ao lembrar das demais reformas em discussão no Congresso Nacional, antes de passar a palavra aos debatedores. Paulo Alceu chamou a atenção para a responsabilidade dos parlamentares, no contexto da crise na saúde pública, e apontou a necessidade de um pacto social para valorização da área no País.
Marco Antônio Teixeira fez um alerta: “Somos todos usuários do SUS e é nessa medida que devemos pensar o Sistema”. Sobre o aumento e natureza das ações judiciais, o procurador de Justiça disse que o País está judicializando o “Estado da Arte”, numa referência às demandas por medicamentos de alto custo e procedimentos de alta complexidade e tecnologia. Teixeira advertiu que a judicialização não contempla a agenda da saúde do século 19 e lembrou que o Brasil não investe o necessário na prevenção de doenças como hanseníase, leishmaniose e Doença de Chagas. “É necessário olhar para a atenção básica [à saúde] porque muita gente está em leitos de hospital porque não teve a atenção básica”, concluiu.
Para o coordenador do CAOP/Saúde do MPPR, somos todos iguais perante a Constituição, mas não o somos no âmbito da judicialização. O procurador apontou a parcela da população que não tem qualquer noção de direito e de como exercê-lo, além de não poder pagar um advogado. “Um grupo maior que necessita de assistência à saúde não demanda na Justiça”, refletiu. Teixeira registrou que, ao contrário do que ocorre com a educação — 81% das ações são coletivas — a grande maioria das demandas por saúde são individuais — 98% — e por isso, a situação assumiu tal proporção.
Marco Antônio também chamou a atenção para a importância do Estado ficar atento ao número de ações recorrentes na área da saúde, que podem indicar a necessidade de incorporação de medicamentos e procedimentos nos protocolos do SUS, beneficiando a coletividade. Segundo ele, também é necessário conhecer o valor total da judicialização no País. Enquanto a União e os estados dispõem dessa informação, não existem dados consolidados sobre os gastos pelos municípios, nos quais recai o maior impacto do problema.
“Nem toda prescrição médica é sinônimo de direito à saúde daquele que a porta”, ressaltou, ao apontar que, muitas vezes essas prescrições estão comprometidas com produtores de bens e serviços. Teixeira destacou que os operadores do direito ficam, muitas vezes, reféns diante de uma prescrição por medicamento de alto custo. Como proposta de solução para enfrentar a judicialização, o procurador de justiça defendeu a ampliação do debate, com a participação de todos os atores envolvidos — Ministério Público, Defensorias Públicas, academia, Judiciário, Tribunais de Contas e, em especial, da representação médica. “Porque o grande problema que se estabelece é que junto da ordem judicial [para fornecer um medicamento ou procedimento] não vai o recurso [financeiro]”, salientou.
O defensor público-geral do Estado, Ralf Zimmer Júnior, disse que a judicialização da saúde, para a sociedade, deveria ser exceção e não uma regra. “As Defensorias Públicas e os escritórios de advocacia assumiram o papel de balcão de senha do SUS”. Segundo Zimmer Jr., a Defensoria Pública do Estado tem se deparado com situações complexas, diante de demandas judiciais que envolvem cidadãos que supostamente poderiam arcar com os custos dos medicamentos e procedimentos solicitados.
O defensor público propôs que se repense o Estado de bem-estar social que se quer construir. “Dar tudo para todos não funcionou em nenhum lugar do mundo. Será que a saúde tem que ser direito de todos [patrocinado] pelo Estado?”, questionou. Ao lembrar da responsabilidade solidária pela assistência à saúde, da União, estados e municípios, Zimmer Jr. apontou uma solução que está sendo articulada, para minimizar os custos da judicialização, em Santa Catarina, por meio da cooperação entre as Defensorias Públicas do Estado (DPE) e da União (DPU). A ideia é que as ações judiciais com valor de até 40 salários mínimos fiquem sob a responsabilidade da DPE e as que excederem esse montante estejam sob a competência da União.
Participação do público
Após as exposições, o mediador do evento, jornalista Paulo Alceu, coordenou o debate, inclusive, com a participação do público presente, que formulou perguntas por escrito aos palestrantes. Entre os assuntos discutidos, tratou-se dos problemas da gestão na administração pública, com gastos excessivos e falta de planejamento, a questão da proporcionalidade do custeio entre os entes federativos; os parâmetros para definição do controle da integralidade do atendimento do SUS; a prevalência constitucional do direito individual sobre o coletivo; a adoção do princípio da razoabilidade no momento da decisão judicial ; os mecanismos judiciais para que os municípios possam exigir ressarcimento no caso de atendimento a pessoas não munícipes; a legitimidade do pagamento de medicamentos não registrados pela Anvisa, entre outros.
A capacitação teve a coordenação da Presidência do Tribunal catarinense e do Instituto de Contas (Icon) — órgão responsável por promover a política de educação corporativa — e a parceria da Associação Catarinense de Imprensa (ACI). A iniciativa, que reuniu 340 pessoas, integra o Programa de Interação com a Sociedade e foi desenvolvida no âmbito da ação Cidadania Ativa, cujo objetivo é ampliar as oportunidades de integração entre os controles externo, exercido pelo TCE/SC, e social, realizado individual ou coletivamente, por cidadãos.
Agência TCE